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Siete textos para siete pinturas
Isla, 200 x 200 cm
Por seu caráter multidisciplinar e multimídia por excelência, não causa espanto que a trajetória coerente de Jorge Macchi (n. 1963, Buenos Aires) comporte, agora, uma guinada à pintura – uma espécie de peça perdida de um quebra-cabeças. Esta pesquisa remonta ao início de sua prática como artista, no fim dos anos 1980, quando se dedicou exclusivamente à pintura, mas também a um interesse pela representação pictórica constante numa série de aquarelas realizadas desde meados da década seguinte. Desenho, aquarela, texto, instalação, escultura, objeto, música, vídeo, fotografia, colagem, obras com luz, recorte, livro de artista, gravura, arquitetura, paisagismo e, agora novamente, pintura – eis algumas das linguagens que o artista utilizou em sua trajetória. Há uma preferência por explorar algo específico a cada uma destas disciplinas e não há a repetição de temas que aparecem adaptados, artificialmente, aos novos suportes.
Em suas aquarelas, geralmente Macchi situa o tema no centro da composição, com um claro contraste entre figura e fundo. É como se Isla fosse uma transposição a óleo deste expediente, com a imagem de uma peça de quebra-cabeça colocada no centro da pintura e os gotejamentos de sua feitura mantidos sobre a superfície a nos lembrar da especificidade material desta mídia. Há ainda as marcas do trabalho de pintura, que são mantidas de maneira virtuosa na maneira de construir o puzzle, os índices da mistura de tintas, do movimento do pincel, a mão imperfeita ao delimitar o contorno da figura. É uma pintura que parece conter, ao mesmo tempo, a semente e a síntese desta nova produção de pintura (todas as obras: óleo sobre tela, 2011).
Confesión, 150 x 200 cm
O jogo de linguagem que compreende e apresenta a pintura como forma de fazer ver e esconder aparece nesta tela de forma violenta e exemplar. A uma paisagem pintada com palheta pós-impressionista, Macchi sobrepõe uma vasta área branca que representa uma chapa com pequenos orifícios. No mínimo, isto altera nosso ponto focal para visualizar a pintura.
Sticker, 180 x 200 cm
As pinturas desta produção guardam algumas características em comum: são feitas em grande escala, com presença efetiva de matéria pictórica, com maior ou menor gestualidade e, de uma maneira geral, tratam das relações entre figura e fundo. Este texto, encomendado pelo artista especificamente para a exposição, responde à experiência de ver todas as pinturas reunidas, recém-concluídas, no ateliê (maio de 2011). Esta peça gráfica foi criada em diálogo com o artista, de maneira que cada pintura fosse representada por um texto inédito escrito pelo autor, composto numa caixa tipográfica com as proporções da respectiva pintura. Sticker, entre elas, é a mais enigmática ou, antes, a que guarda um caráter mais fugidio à interpretação. As figuras de Mickey e Minnie Mouse aparecem apenas delineadas pois o adesivo que as continha foi arrancado, e a figura só existe como ausência e, mais uma vez, índice. Não sabemos se as eleições da pintura — a cor, a espessura da linha restante, as irregularidades do contorno — de fato representam algo existente no mundo ou se foram ditadas arbitrariamente pelo artista. A fim e a cabo, ela fala da impossibilidade de representar. E como interpretar, onde não se pode sequer representar?
Catedral, 2011, 200 x 180 cm
Na construção intricada das pinturas de Macchi, uma delas tem o peso como característica. Do peso de ver, ler e representar, parece nos dizer esta pintura. No diálogo entre leitura e visão, leitores e videntes somos cegados pela própria constatação da experiência retiniana. O cartaz de exame de visão desaparece, a olhos nus, à medida em que as linhas da escrita sem significado vão baixando e a letra, diminuindo. A qualidade de representação desta pintura nos sugere um meio termo calculado entre a visão rápida e a observação insistente. Aqui existe a convocação de uma técnica de pintura elaborada, na qual sucessivas camadas de tinta sobrepostas resultam num espaço com profundidade e numa superfície tensa, gasta, craquelée, como que envelhecida. O negro da figura (tinta, letras) mistura-se ao branco do fundo (papel, tinta) e vice-versa. Há um jogo metalingüístico no fato de que, à medida que se somam camadas à tela, o resultado seja o desaparecimento. Esta pintura de Macchi nos fala de uma presença ausente, uma menos valia onde mais matéria resulta em menos imagem; somos confrontados com o limite da nossa cegueira, à medida em que enxergamos transparência e velatura, uma transparência cujo resultado é a obliteração. Pensamos em Jorge Luís Borges (“El mundo del ciego no es la noche que la gente supone”), que dizia que o negro era justamente a cor de que sentia falta na sua cegueira (1). Na armação intersemiótica de Macchi, não é nem na escrita nem na pintura que o significado está agenciado de maneira mais pungente. Seu título coloca a arquitetura em jogo, porém o índice da verticalidade de uma torre é desconstruído pela posição invertida da figura na tela (para o artista, trata-se do teto de uma catedral que desaparece na perspectiva, em direção ao altar). À medida que a figura aumenta, sua presença diminui. E como que desaparece, nas nuvens.
1. Conferência no Teatro Coliseo, Buenos Aires, 3 de agosto de 1977.
Falling week, 300 x 60 cm
Assim como o mapa, o relógio constitui um motivo recorrente na obra de Macchi, revelando seu interesse por examinar, analisar, dissecar e subverter sistemas de representação dados. O relógio aparece sobretudo em aquarelas, vídeos e instalações, que fazem referência a um tempo desconstruído e re-funcionalizado. Em vez de relógio, em Falling week vemos a representação de um fragmento semanal de calendário, com o dia de folga representado, como de praxe, em vermelho (para uma analogia com o uso do vermelho no relógio, ver a aquarela Round midnight, 2008). Uma série de artistas que usaram números em suas obras, de Jasper Johns a On Kawara, passando por Cildo Meireles, vêm à mente. Aqui contudo, há um arrastado da pintura que confere uma ação específica aos algarismos (de 7 a 13). À medida que a semana avança, o calendário ascende na pintura, tornando os dias menos espaçados e a tinta mais borrada, até um ápice dominical em vermelho, como se não fosse mais calendário mas um termômetro que registrasse um pico de temperatura.
American dream, 170 x 300 cm
Assim como o relógio, o mapa constitui um motivo recorrente na obra de Macchi, revelando seu interesse por examinar, analisar, dissecar e subverter sistemas de representação dados. O mapa aparece sobretudo em recortes, colagens e instalações que fazem referência ao mapa múndi, a cidades e a acidentes geográficos (por exemplo: Paisagem marinha, 2006; La ciudad luz, 2006, e La ciudad perfecta, 2003; 32 morceaux d’eau, 1994). American dream traz este interesse à representação pictórica, partindo de uma imagem apropriada. O mapa que vemos nesta pintura de dimensões arquitetônicas é o mesmo que aparece para representar o mundo no monitor de vídeo do avião – aí reside seu primeiro estranhamento, numa violenta alteração de escala que lida com nossa percepção habitual desta imagem. Os recursos de computação gráfica da imagem original são re-interpretados para atender a esta mudança de escala e também à técnica de pintura, e os pixels dão lugar a uma pincelada vigorosa e virtuosa, calculadamente apressada. O uso de recursos pictóricos para representar fenômenos naturais já aparecera antes na obra de Macchi (ver a aquarela Dilúvio 2, 2010), mas aqui a camada de tinta escura que cobre o continente americano de noite é revestida de outros significados políticos, poéticos e existenciais. O sonho americano pode se referir ao sonho de cada um que está dormindo naquele momento, mas também a um sonho político de transformação. O contraste marcado entre as duas áreas de luz no quadro pode se referir a uma dualidade geopolítica, numa espécie de yin-yang.
Para todas estas pinturas de Macchi, podemos evocar o título do primeiro dos Ensaios de Montaigne: “por diversos meios chega-se ao mesmo fim”.
Tape, 100 X 200 cm
Com exceção de Confesión, todas as pinturas de Macchi partem de imagens apropriadas do universo gráfico, que aparecem reprocessadas no tratamento pictórico dispensado a elas. Tape lança mão do mesmo procedimento, usando a imagem-texto impressa sobre a fita adesiva que costuma acompanhar cargas frágeis, como pinturas, em suas viagens pelo mundo. Em vez de sua apresentação direta (afinal é uma fita e pode ser configurada de diversas maneiras), o artista opta pela fragmentação icônica da palavra “frágil”, mediante o enquadramento fechado e a sobreposição de camadas de fita (digo, tinta). Esta desconstrução gráfica é ao mesmo tempo construtivista e estrutural, parafraseando o que Augusto de Campos escreveu sobre e. e. cummings (1). Ela reconstitui nossa experiência em nível sensível e sensorial, multiplicando nossas possibilidades de leitura, e dialoga com alguns princípios morfológicos da pintura, como o retângulo e a sobreposição.
1. Augusto de Campos, “e. e. cummings, Sempre jovem”, in E. E. Cummings, Poem(a)s. Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1999.